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Durante muito tempo, o universo geek foi um refúgio para os apaixonados por ficção científica, super-heróis, fantasia e jogos. Um território de escapismo, onde era possível mergulhar em outras realidades e deixar os dilemas do mundo real para depois. Mas os tempos mudaram — e o que antes era um reduto de entretenimento agora se tornou um dos palcos mais intensos da guerra cultural contemporânea.
Na última década, a cultura pop foi elevada à categoria de arena política. Personagens icônicos e narrativas clássicas passaram a ser disputados entre visões de mundo diametralmente opostas: de um lado, grupos conservadores — em muitos casos alinhados à extrema-direita — que tentam resgatar supostos valores tradicionais por meio de seus heróis favoritos. Do outro, movimentos progressistas que exigem representatividade, inclusão e uma atualização ética e estética desses universos.
Essa disputa ideológica pela cultura geek não é mero capricho. Ela revela como a arte e o entretenimento estão profundamente ligados às identidades e aos afetos de uma sociedade em transformação. E mais: como símbolos aparentemente neutros podem se tornar armas ideológicas em tempos de polarização.
A politização dos heróis: ressignificar ou recuperar?
A reinterpretação de personagens clássicos se tornou uma prática comum — e controversa. Super-heróis como o Capitão América e Superman, que surgiram em contextos históricos específicos como a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria, agora são lidos sob a lente das disputas contemporâneas. Isso não ocorre por acaso: seus discursos originais, por vezes nacionalistas ou simplificados, estão sendo resgatados ou resignificados para servir a diferentes agendas.
A extrema-direita, por exemplo, tem buscado resgatar esses personagens como símbolos de ordem, autoridade e tradição. Nas redes sociais e canais no YouTube, é comum encontrar vídeos que exaltam a “masculinidade clássica” de personagens como Rambo ou Batman enquanto atacam versões mais inclusivas ou críticas do mesmo universo.
A pesquisadora Angela Nagle, no artigo The New Man of 4chan, mapeia como fóruns como 4chan e subsequentes canais da alt-right nos Estados Unidos utilizaram ícones da cultura pop para difundir uma estética ideológica que mistura nostalgia, ressentimento e humor corrosivo. Nessa leitura, a cultura geek torna-se solo fértil para discursos extremistas porque seu público original — majoritariamente masculino e branco — se sentiu ameaçado pelas mudanças culturais dos últimos anos.
Nostalgia como trincheira ideológica
A nostalgia, nesse cenário, não é apenas um sentimento inocente. Ela pode funcionar como trincheira política. Um apego ao passado que se transforma em rejeição ao presente. Quando fãs reagem negativamente à presença de uma mulher negra como protagonista em uma saga como Star Wars, não estão apenas criticando escolhas narrativas: estão sinalizando resistência a transformações sociais mais amplas.
Essa tensão ficou evidente nos protestos contra Os Últimos Jedi (2017), filme que dividiu a base de fãs da franquia. Muitos acusaram o longa de “militante” por trazer uma diversidade maior no elenco e subverter arquétipos clássicos. Outro exemplo recente é Os Anéis de Poder (2022), série inspirada na obra de J.R.R. Tolkien, que foi atacada por incluir personagens negros em um universo historicamente embranquecido — mesmo sendo uma obra de fantasia.
Para estudiosos da cultura pop, essa rejeição revela como parte do fandom não apenas consome entretenimento, mas o interpreta como um espelho de seus valores. Quando o espelho muda, o incômodo aparece.
A resistência como marketing — e como manipulação
É inegável que parte das críticas às mudanças em franquias populares tem fundamentos narrativos legítimos. Nem toda inclusão é bem executada, e há casos em que a diversidade é usada como estratégia de marketing superficial, sem compromisso real com a transformação estrutural. No entanto, reduzir todas as críticas a esse argumento pode ser perigoso.
Há também uma dimensão claramente orquestrada. Grupos organizados nas redes, em especial no YouTube, têm capitalizado politicamente sobre essa “resistência”, utilizando-a para impulsionar canais, vender cursos e até lançar candidaturas políticas. A pesquisadora Rebecca Lewis, no relatório Alternative Influence, mostra como a chamada “nova direita” digital cria uma rede de influenciadores que utilizam temas como “ideologia de gênero” e “inversão de valores” para manipular o discurso geek.
Nessa lógica, o entretenimento vira uma plataforma de doutrinação travestida de opinião. Os fãs são incentivados a ver a diversidade como ameaça, e o apelo ao “respeito pela obra original” serve como verniz para ataques preconceituosos.
O papel ambíguo das grandes corporações
As gigantes do entretenimento — como Disney, Warner e Netflix — estão presas em uma encruzilhada. De um lado, sabem que a diversidade é uma demanda crescente e uma forma de expandir audiências em escala global. De outro, temem boicotes e reações negativas da base de fãs mais conservadora. O resultado, muitas vezes, são produções que tentam agradar a todos e acabam agradando poucos.
Além disso, essas empresas enfrentam o desafio de lidar com redes sociais altamente polarizadas, onde qualquer movimento pode se tornar viral — para o bem ou para o mal. Um personagem secundário pode gerar uma onda de cancelamentos, e uma escolha de elenco pode ser interpretada como provocação política.
Apesar dos riscos, há avanços. Séries como Ms. Marvel, The Last of Us e Heartstopper mostram que é possível tratar de diversidade com sensibilidade e profundidade, conquistando novos públicos sem perder qualidade.
O fandom como microcosmo da sociedade
A cultura geek reflete, hoje, os mesmos conflitos que vemos no mundo político. Identidade, pertencimento, exclusão e representação são temas que ultrapassam as telas e as páginas dos quadrinhos. O fandom, antes visto como um grupo apaixonado, mas inofensivo, tornou-se um microcosmo das disputas sociais mais amplas.
Hoje, ser fã também é um ato político — mesmo quando não se quer. As escolhas sobre o que assistir, o que apoiar ou criticar, e até como interpretar uma história, estão imersas em um caldo ideológico. É por isso que o entretenimento não pode mais ser pensado como algo neutro ou meramente escapista.
Como aponta o canal Quadrinhos na Sarjeta, não se trata de “politizar” a cultura pop — ela sempre foi política. O que muda agora é a consciência coletiva sobre isso.
O que está em jogo
A guerra cultural dentro do universo geek é, no fundo, uma disputa sobre o futuro. Que histórias queremos contar? Quem merece ser representado? Que valores nossos heróis devem defender?
Não há respostas simples. Mas há um ponto de partida possível: reconhecer que a cultura pop é mais do que diversão. Ela é também linguagem, símbolo e poder. E nesse cenário, talvez o mais importante não seja escolher um lado, mas não se deixar manipular por discursos que tentam transformar diversidade em inimigo.
Se o mundo real está cada vez mais complexo, talvez nossos mundos fictícios também precisem acompanhar essa mudança — com mais pluralidade, nuances e coragem.